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Há uma passagem de uma obra de Ivan Turguêniev, intitulada Ássia, onde nos deparamos com uma cena que envolve um homem e uma mulher que, um dia, foram um casal.

No correr da história, por cargas d’água que não vem ao caso, o casal se separou. Muitas páginas se passaram e, lá pelas tantas, o senhor estava em um trem indo para algum lugar. Para onde, não nos interessa também.

O que vem ao caso é que o trem parou numa estação ferroviária e, do outro lado da mesma, estava parada outra locomotiva e essa, por sua vez, estava rumando para outro rumo, para uma direção oposta à que ele estava indo.

Lá pelas tantas, como diria todo bom paranaense, o moço moveu seus olhos para a direção do trem que estava ao lado do seu e, para sua surpresa, viu que num dos vagões estava a sua ex-esposa. A sua bela ex-esposa.

E como o destino sempre conspira contra os corações aflitos, a senhora, elegantemente vestida e bem acomodada no vagão que estava sob a mira de seus olhos, também voltou suas vistas para a direção do vagão onde estava o incauto senhor.

Os olhares dos dois se entrecruzaram; e eles se tocaram com as pupilas e acariciaram-se com a imaginação, vendo um nos olhos do outro a vida que eles poderiam ter tido, mas que não foi vivida por eles, como diria Manuel Bandeira.

Os dedos das mãos pressionavam o vidro da janela que ficava embaçado com a respiração ofegante de ambos que, de certa forma, segurava, do jeito que dava, um grito que estava engasgado. E, sem a menor cerimônia, as duas locomotivas partiram, cada uma para o seu destino, que não era o destino ansiado pelos dois olhares que, para sempre, se despediram.

O aconteceu a cada um depois desse momento não nos cabe dizer, nem especular. A única coisa que realmente importa é que naquela fugidia troca de olhares, ambos se compreenderam como nunca antes haviam se compreendido e, por isso, amaram-se naquele instante, como nunca antes haviam se amado em suas vidas.

Cada um encontrou a verdade do amor vivido que se tornou perdido, ambos contemplaram a realidade do amor eterno, que habitava seus corações, e isso os fazia sentirem-se integralmente vivos, mesmo que não pudessem dizer nada um para o outro. E nem precisava, pois tudo já havia sido dito sem a necessidade de palavra alguma, através da vidraça das janelas dos vagões.

E assim somos nós, todas as vezes que temos a felicidade de termos, diante dos nossos olhos, o desvelo de alguma faceta da vida, ou de alguma verdade, que chega até nós através das páginas de um livro, das cenas de um filme, de uma série, de uma canção, de uma aula, palestra, de um encontro, enfim, quando a realidade se abre diante de nossos olhos e temos uma sensação similar a vivenciada por esses dois olhares sem nome.

São esses momentos fugidios que, literalmente, são o cerne da formação da personalidade humana, da construção do caráter do indivíduo, o alicerce de nossa existência, porque é a partir dessas experiências luminosas que inicia-se uma jornada de crescimento em espírito e verdade, como nos ensina Louis Lavelle.

E, por essa razão cheia de motivos, podemos dizer que infeliz é o sujeito que nunca foi abençoado com um momento assim. Triste são as almas que nunca viveram instantes intensos em que seus olhos, do nada, marejaram em lágrimas, num misto de contentamento e deslumbre por ter se encontrado com algo que não cabe em seu coração.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - (professor e cronista - dartagnanzanela@gmail.com)

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