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A ciência é bem capaz de demonstrar que o observador conhece sua pesquisa, sempre, dentro dos balizamentos estabelecidos por determinado ponto de referência. Vale dizer, o conhecimento não pode ser isolado, mas deve, necessariamente, ser contextualizado, parametrizado, cotejado com certos referenciais, capazes de conferir maior densidade às conclusões a que porventura se chega.

Essa premissa pode muito bem ser transposta para a análise acerca dos trinta anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Sem dúvidas, trata-se de diploma normativo que se apresenta como expoente da segunda dimensão dos direitos fundamentais, marco das tutelas coletivas e summa divisio em matéria de proteção das pessoas em desenvolvimento.

Nesse sentido, a proposta de comparação do advento do ECA com o período precedente, regido pelo “Código de Menores”, revela verdadeiro ponto de inflexão em um processo de avanço civilizatório, haja vista, dentre outros aspectos, a absorção normativa da doutrina da proteção integral (ECA, art. 1º).

Em outras palavras, alinhou-se a um sistema de proteção prioritário dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, oponíveis ao Estado, à família e à sociedade, optando-se pela atuação conjunta, para que seja disponibilizada à população infantojuvenil toda assistência necessária ao seu completo desenvolvimento.

Posicionou-se, também, o ECA, pelo reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e não mais como personagens de segunda classe ou mesmo caudatários da cidadania.

Em decorrência dos valores assumidos, o Estatuto elenca a obrigatoriedade em se assegurar todas as oportunidades e facilidades para o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social das crianças, em condições de liberdade e de dignidade (art. 3º).

A partir de tais preceitos, observou-se significativo avanço nas políticas públicas implementadas no segmento de que se está a abordar, sedimentando-se algum consenso em se atribuir ao Estado o dever inescusável, indelegável e inadiável de assegurar o mínimo existencial para aqueles a quem foi confiado, ainda que involuntariamente, o futuro da Nação.

Resultado disso pode ser constatado no trabalho dos Conselhos Tutelares, no planejamento definido pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, nas Varas Judiciais, Promotorias de Justiça e Delegacias de Polícia especializadas e na visibilidade conquistada em relação ao tema, do que não se furtou a jurisprudência, consolidada sobretudo no âmbito dos tribunais superiores (e.g. STJ. REsp. 440.502/SP. Rel. Min. Herman Benjamin. J. 15.12.2009), afastando incisivamente argumentações de cunho estritamente financeiro ou, em alguma medida, refratárias às prioridades definidas pelo próprio constituinte.

Importa, também, o destaque para o direito à educação, considerando-se que o acesso ao ensino, em condições adequadas, constitui-se em pressuposto para o atingimento das finalidades do Estado Brasileiro (CF, arts. 1º e 3º) sendo, por isso, o acesso à educação básica obrigatória e gratuita (CF, art. 208, I) tido como direito público subjetivo (CF, art. 208, § 1º).

Foram notáveis os avanços na educação, detectados especialmente na universalização do acesso, propiciada por “ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas” (CF, art. 23, V), a exemplo dos patamares mínimos de gasto (CF, art. 212); das medidas equalizadoras, voltadas ao estabelecimento de uma espécie de subvinculação dos recursos, trazidas pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) (ADCT, art. 60); assim como dos desenhos de participação social, inspirados na gestão democrática do ensino, o que se ilustra com a instituição dos Conselhos de Acompanhamento e Controle Social (CACS), responsáveis pela análise das contas e comunicação de supostas irregularidades a outros órgãos de controle.

O quadro, todavia, não se apresenta igualmente alvissareiro se adotados outros referenciais, como o IDH ou índices de mensuração da qualidade do ensino, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Três exemplos podem ser colacionados.

Primeiro. Conforme o Pisa, de acordo com o Relatório Nacional Pisa 2012 – Resultados Brasileiros, mais de 60% dos alunos brasileiros, acima de 15 anos de idade, não estavam plenamente habilitados, naquele ano, ao exercício da cidadania, por insuficiência de letramento e baixo nível de proficiência em matemática.

Segundo. A educação infantil, em que pese sua relevância, inclusive sob o enfoque social e econômico, padece com o desprezo das autoridades, com o efeito das improvisações e com a insuficiência da oferta, estampada nas conhecidas demandas manifestas por vagas.

Terceiro. Gradativamente os resultados na área da educação distanciam-se das metas idealizadas pelo Plano Nacional da Educação (2014-2024). Menciona-se apenas a Estratégia 7.21 que previa que a União, em colaboração com os entes federados, estabeleceria, no prazo de dois anos, parâmetros mínimos de qualidade dos serviços da educação básica, a serem utilizados como referência para infraestrutura das escolas, recursos pedagógicos, entre outros insumos relevantes, bem como instrumentos para adoção de medidas para o incremento da qualidade de ensino.

A melhoria qualitativa pressupõe o ensino em período integral, a capacitação dos profissionais, a diminuição da relação entre o número de professores e o de alunos, a elevação do percentual de professores com nível de ensino superior, a reestruturação programática e a construção de uma escola mais atraente e desafiadora.

Tal quadro desperta enorme inquietação, pois a ausência da proteção eficiente na política pública voltada à oferta da educação obrigatória, para além de violar direitos elementares e aprofundar o cenário de desigualdade social, submete as crianças e os adolescentes a danos irreparáveis, trazendo-lhes consequências negativas nos aspectos neurológico, social, pedagógico e econômico.

Intensifica a preocupação o fato de que, contrariamente à disciplina prioritária dos recursos destinados à educação, sucessivas emendas constitucionais implantaram uma sistemática de desvinculação de receitas, tendente a reduzir as disponibilidades orçamentário-financeiras que capacitam o Estado a assegurar direitos sociais.

Os trinta anos da moderna proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes devem, certamente, ser celebrados. Quer com invulgar júbilo, em razão dos avanços experimentados; quer com esfaimado desafio, em decorrência do caminho que ainda pende ser percorrido. Tudo depende do referencial.

Hirmínia Dorigan de Matos Diniz -  Procuradora de Justiça do MPPR, que entre 2008 e 2018 atuou na Promotoria de Justiça de Proteção à Educação de Curitiba

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