Digite pelo menos 3 caracteres para uma busca eficiente.
Artigos e Opinião 02/10/2019  08h44

Janot

Ainda tenro ele sonhara com a República. Miscigenava-a com o território, com a sociedade. As injustiças eram evidentes. Ignorava se deveria dizer proletariado, descamisados, excluídos, simplesmente pobres. Ele se livrara dos agrestes, mas sentira nas ingratas imaginações seus espinhos perfurantes.

Conhecer o Direito possibilitara desvendar muitos mistérios. Eram moradores das instituições. As campanhas políticas, monótonas, sempre produziam resultados monótonos. As teorias jurídicas reclamavam leis e estas, não raro, nasciam mortas e tentavam viver como sonâmbulos. Uma filha parecia preencher a república vazia. O sentimento próximo supria a solidariedade aos distantes.

Fizera-se o principal advogado da tão sonhada república. Mas o sonho não tinha passagem. Aproximara-se do Direito dos entroncamentos sociais, mas este era representado por outros, grudados à burocracia que se usava como ferramenta do injusto.

Naquela noite não dormira. Passara somente as mãos sobre o revólver, que a função lhe garantira. Perder ambos os sentimentos lhe parecia insuportável. Algo precisaria explodir como nunca em sua sempre desgastada aldeia.

O dia seguinte era sessão plenária. Ele estaria lá. Quando deveria dar vazão completa à insanidade? Sim, sabia ser ato insano, mas o valorava. Tinha de atear fogo à suposta floresta encantada. Pensou em procurar socorro médico, mas permaneceu imerso em sua solidão. Não seria encerrada a sessão, não haveria a de quinta, aquela noite seria a mais agitada de toda a história.

O salão não ouviria mais passos perdidos. A noite se precipitaria à tarde. Mas quando? Tinha dúvidas. Antes do início, pareceria uma covardia, uma emboscada. Era melhor que o deixasse iniciar seus costumeiros agravos - pelo menos assim lhe pareciam suas intervenções. Pediria um aparte. Este seria o disparo fatal. Em seguida também garantiria que não veria o futuro. Nunca estivera tão perto de seus antepassados e distante de sua filha agravada.

Por isso não disparou. O ato deveria ser simbólico, terrível, inesquecível. O sangue dos oficiantes do direito, comum, coagulando. As togas marrons, o alvoroço dos desesperados, as comunicações incontinentes pelo mundo afora. A imagem de Cristo ao centro pareceria chorar, mas o mundo se faz de colisões imensas e o crucificado sabia disso. Shakespeare não imaginara essa tragédia, por isso não fora eterno.

Não houve provocação e pedido de aparte. O teatro deveria ficar para a sessão seguinte. Foi o tempo suficiente para, ao segundo crepúsculo, conseguir domar seu cavalo bravio vindo do mais fundo inconsciente, para resgatar suas filhas: a república e o produto de seu sangue.

Anos mais tarde confessaria seu desatino tresloucado. À dominação do inconsciente selvagem atribuiria uma mão divina. Sua morte moral estava selada, e nenhum dos dois destinos filiais iria sofrer qualquer espécie de mudança. Às noites os passos voltariam a produzir seus ecos pausados e atemorizantes no salão das regras soberanas.

Amadeu Garrido de Paula é jurista do escritório Garrido de Paula Advogados.

#JornalUnião

Utilizamos cookies e coletamos dados de navegação para fornecer uma melhor experiência para nossos usuários. Para saber mais os dados que coletamos, consulte nossa política de privacidade. Ao continuar navegando no site, você concorda integralmente com os termos desta política.