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Que tal o Arthur Lira ou Ciro Nogueira como primeiro-ministro? Brincadeira ou tem fundo de verdade. Que o leitor tire as conclusões. O fato é que o Brasil adota como sistema de governo um presidencialismo de tipo imperial. E com sustentação partidária. Sob a capa rota de uma coalizão, o governo padece de crises cíclicas. Tanto mais extensa a aliança em torno do Executivo, maior a probabilidade de seu comandante, o presidente, administrar sismos nas frentes congressuais para garantir a governabilidade. Agora, chegou, mais uma vez, a oportunidade para o centrão, com suas siglas amorfas, abocanhar fatias de poder.

O nosso presidencialismo sofre uma crise crônica. A relação de troca mede o equilíbrio entre o Executivo e o Legislativo. O primeiro alimenta-se da base política e esta come do seu pasto para engordar, reeleger seus representantes e se perpetuar no poder. Qualquer tentativa de atenuar a hegemonia presidencial soa como loas à utopia.

Um parlamentarismo à moda francesa ou portuguesa não parece combinar com os traços de nossa realidade política. Sua arquitetura é mais refinada. Seu escopo, mais plural. O modelo parlamentarista abriga uma coleção de adjetivos que emolduram a moderna política: avançado, racional, mais democrático, conectado à realidade, flexível, sensível à dinâmica social. Ocorre que na esfera dos costumes políticos estamos ainda no ciclo da carroça, do trem maria-fumaça, da construção das primeiras estacas éticas e morais. A semente presidencialista, como se sabe, viceja em todos os espaços.

O termo presidente faz ecoar significados de grandeza, forma associação com a aura do Todo-Poderoso, com as vestes do monarca, com a caneta do homem que tem influência, poder de mandar e desmandar. Até no futebol o presidente é o mandachuva.

Costumo lembrar essa história. Em 1980, no final do Campeonato Brasileiro, o Flamengo ganhou por 3 a 2 do Atlético Mineiro, em polêmica partida disputada no Maracanã. O árbitro expulsou três jogadores do Atlético, a bagunça tomou o campo e agitou os nervos. No fim, transtornado com o “resultado roubado”, Elias Kalil, presidente do Atlético, exclamou aos berros: “Vou apelar para o presidente da República, João Figueiredo! Vou falar pra ele de presidente para presidente!” O culto à figura do presidente e, por extensão, a outros atores com forte poder de mando faz parte da glorificação em torno do Poder Executivo. Tronco do patrimonialismo ibérico. Herdamos da monarquia portuguesa os ritos da Corte: admiração, bajulação, respeito e mesuras, incluindo o beija-mão.

O gosto latino-americano pelo sistema presidencialista tem que ver com o aparato monárquico na região. Um lembrete: o vasto e milenar Império Inca, com seus grandes caciques, e depois o poderio espanhol, com seus reis, vice-reis, conquistadores, aventureiros e corregedores, plasmaram a inclinação por regimes de caráter autocrático. Já o parlamentarismo que vicejou na Europa se teria inspirado na ideologia liberal da Revolução Francesa, cujo alvo era a derrubada do soberano. Isso explicaria a frieza europeia ante o modelo presidencialista. A disposição monocrática de exercer o poder vem, no Brasil, desde 1824, quando a Constituição atribuiu a chefia do Executivo ao imperador. A adoção do presidencialismo, na Carta de 1891 – que absorveu princípios da Carta americana de 1787 –, só foi interrompida no interregno de 1961 a 1963, quando o País passou por ligeira experiência parlamentarista.

O poder que emana do presidencialismo impregna a figura do mandatário, elevado à condição de pai da Pátria, protetor, benemérito, imagem que ganhou tintas fortes no desenho de nossa cidadania. De acordo com o conhecido (e por mim sempre lembrado) traçado do sociólogo Thomas Marshall, os ingleses construíram sua cidadania abrindo, primeiro, a porta das liberdades civis, depois, a dos direitos políticos e, por fim, a dos direitos sociais. Entre nós, os direitos sociais precederam os outros. Adensa legislação social (benefícios trabalhistas e previdenciários) foi implantada entre 1930 e 1945, num ciclo de castração de direitos civis e políticos. Getúlio desenhou os portais dos direitos sociais, com força ao sindicalismo. Portanto, o civismo e o sentimento de participação ficaram adormecidos por muito tempo no colchão dos benefícios sociais. Por isso mesmo, o parlamentarismo não tem chance por aqui. Já imaginaram a figura de cacique do centrão como primeiro-ministro?

Não temos uma cultura política que abrigue o parlamentarismo. Sistema que carece de partidos fortes, com bandeiras programáticas claras, estatutos sólidos, como fidelidade partidária. Instituir o parlamentarismo sem moralização da vida política é pregar no deserto, é aumentar a dose de caos. Tivéssemos um sistema partidário forte, o sistema parlamentarista seria o ideal para reorganizar a trilha do país. Infelizmente, ainda não estamos maduros para ganhar este avanço.

Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político Twitter@gaudtorquato - Acesse o blog www.observatoriopolitico.org

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