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Na reta final do Campeonato Brasileiro de 2020, um grupo de torcedores do São Paulo entendeu que a má fase do time poderia ser resolvida com pedras atiradas num ônibus. Na Copinha de 2022, outros entenderam que deveriam sair no braço com jogadores do rival Palmeiras, enquanto uma faca era atirada no campo. Pelo país, há quem prefira constranger profissionais em aeroportos, outros acham de bom tom invadir um Centro de Treinamento e agredir quem surgir pela frente.

A atual temporada, que nem dois meses completou, tem sido frenética. Na quinta-feira, um grupo de torcedores do Bahia achou que pedras contra o ônibus talvez mudassem o curso de uma sequência de resultados que não os agrada. Com ferimentos que poderiam ter consequências muito graves, o goleiro Danilo Fernandes foi parar no hospital. Neste sábado, em Curitiba, parte da torcida do Paraná entendeu que uma surra nos jogadores serviria para punir o rebaixamento no Estadual. Enquanto isso, o volante Villasanti, do Grêmio, sofria traumatismo craniano antes do Grenal, após o ônibus que levava sua equipe ao estádio ser alvo de pedras atiradas por rivais do Internacional. Horas depois, o interminável 26 de fevereiro de 2022 ainda registraria um ataque ao ônibus do Cascavel, após jogo com o Maringá.

A única coisa que separa o último episódio dos demais é que o jogo não aconteceu. O que faz da iniciativa do Grêmio um marco. Em geral, a regra no Brasil é naturalizar a barbárie. Nossa realidade é a do descontrole e do flerte cotidiano com a tragédia. Mas para que estejamos de fato diante de um ponto de inflexão, é preciso um passo além de não jogar um Grenal: o futebol brasileiro precisa parar.

Sempre nos perguntamos qual seria o limite, o quão perto precisaríamos chegar de produzir uma vítima fatal para que uma partida não fosse jogada. Agora, a questão é outra. Parece cruel cobrar das vítimas, e os jogadores, que em última análise são trabalhadores colocados em situação de vulnerabilidade no simples exercício do ir e vir de seus locais de trabalho, são vítimas recorrentes. A questão é que ficou claro que há pouca gente disposta a discutir mudanças estruturais para transformar uma cultura de abusos, um ambiente tóxico cultivado por décadas para legitimar através do pretexto da paixão todo tipo de violências, seja ela física ou moral, seja ela uma agressão ou um ato de racismo, machismo ou homofobia. Então, hoje, a questão é se os atletas terão capacidade de se articular como classe. Porque o futebol brasileiro precisa parar. E só eles, as vítimas, podem articular um movimento nacional.

Parar seria mais do que um ato de solidariedade com colegas feridos física e moralmente porque perderam um jogo, ou porque vestem uma camisa da cor rival. Trata-se de um ato de autopreservação, porque neste momento cada jogador brasileiro é uma vítima em potencial.

Chegou a hora de, através da capacidade de mobilização dos atletas, os verdadeiros protagonistas do jogo, provocar um encontro entre todos os atores do futebol. E discutir se este é um caso apenas de polícia e de Justiça, mas se também não é uma questão que diz respeito a CBF, federações, clubes, imprensa. Porque cada parte envolvida com o futebol tem um dever de casa a fazer.

Confederação e federações, organizadores de competições, não podem fingir que atos criminosos realizados no ambiente de seus eventos não lhes dizem respeito. Junto com polícia e clubes precisam criar protocolos que garantam aos atletas uma mínima sensação de segurança para que cheguem aos estádios e saiam de seus locais de trabalho em direção ao reencontro com suas famílias.

É lógico que cabe à Justiça reduzir a sensação de impunidade, mas não é só a punição exemplar o caminho. Cabe a todos, o que inclui os clubes e a imprensa, trabalhar para reconstruir o pacto vigente nos estádios, sinalizar claramente que comportamentos são ou não são aceitáveis. O estádio precisa deixar de ser um ambiente de leis próprias, porque foi a partir dele que se expandiu o senso comum de que a rivalidade ou a frustração pelo resultado negativo poderia ser tratado com agressão; que um jogo de futebol podia colocar em questão a integridade física e moral de um atleta; que os profissionais de futebol deveriam ser a única categoria obrigada a considerar normal desenvolver seus trabalhos sob ofensas de toda ordem. E este é um trabalho longo, mas provavelmente o mais eficaz, que inclui convencer a parcela bem intencionada das comunidades que frequentam os jogos a ajudar a expelir os comportamentos indesejáveis. Criar o senso de que nem tudo é permitido no ambiente do jogo.

E, para tal, a indignação não pode ser seletiva. A contundência, o discurso enérgico, não pode ser usado apenas para apontar o dedo na direção da transgressão do clube rival. O pacto precisa ser nacional. Por duas horas após o atentado contra os gremistas, o silêncio do Internacional tão constrangedor quanto a forma como foi quebrado. O presidente Alessandro Barcellos, que ensaiou um certo nível de razoabilidade ao dizer que seu clube apoiava o adiamento, logo se referiu ao desequilíbrio esportivo que seria criado pela realização do jogo após a violência contra o ônibus do rival. E, óbvio, desequilíbrio técnico era, ali, o menor dos problemas. Mas ele foi além: disse estar preocupado com o desequilíbrio criado nas rodadas futuras do campeonato, já que seu time pode perder atletas suspensos com cartões amarelos. É neste nível que tratamos a integridade física dos profissionais.

É hora de uma ruptura, de uma reflexão que inclua torcedores de bem, que eles próprios abandonem a ideia de que o estádio é um depositário de todas as patologias da sociedade, de todas as frustrações do dia a dia. Que é possível fazer das arenas ambientes de paixão, emoção, experiências inigualáveis e, ao mesmo tempo, respeito. Até a crônica esportiva precisa ser levada a refletir se ainda cabe tratar jogos como “guerra”, “batalha”, “vida ou morte”. Se a entrega de vilões numa bandeja se justifica a cada resultado, se o esforço para falar a “linguagem do torcedor” numa busca por engajamento e monetização justifica vender indignação diante de derrotas.

Até hoje, nenhum dos demais atores se mobilizou de verdade. Os jogadores, as vítimas, são a última esperança. Antes que seja tarde demais. E o “tarde demais” parece cada vez mais próximo.

Carlos Eduardo Mansur - Jornalista. No futebol, beleza é fundamental

(https://ge.globo.com/blogs/blog-do-mansur/post/2022/02/27/os-jogadores-sao-as-vitimas-e-a-ultima-esperanca-o-futebol-brasileiro-precisa-parar.ghtml)

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